Mas ta lascada essa tal américa
Nos tempos antigos (2018), Childish Gambino lançou uma música que causou furor no público. Numa frieza e com muita personalidade, Gambino fez uma crítica super consistente sobre os Estados Unidos, a violência e o racismo.
Não to aqui para analisar o vídeo, pelo contrário, tem muita gente boa por ai que já fez isso muito bem (indico esse aqui, se você tiver curiosidade - e estômago). A questão é que foi com esse clipe que conheci Childish Gambino, o nome artístico do ator, roteirista, humorista, músico e rapper americano Donald Glover.
Acompanho Donald Glover desde então - do meu jeito meio desleixado. Atlanta é um tapa atrás do outro, alguns diálogos viralizaram na internet e mesmo assim, quando você assiste a cena, ainda causa aquele sentimento angustiante no estômago.
"- Olha, eu sou pobre, Darius. Está certo? E gente pobre não tem tempo pra fazer investimentos porque gente pobre está muito ocupada tentando não ser pobre. Eu preciso comer hoje… e não em setembro."
Diálogo de Atlanta (1ª Temporada, 2016), criação e produção executiva de Donald Glover.
Não da mesma época (tempo linear é uma mentira), mas outra banda que eu escuto e admiro muito é Calle 13, um trio de música urbana, rap alternativo e pop latino de Porto Rico, composto pelos irmãos René Pérez, Eduardo Cabra e Ileana Cabra Joglar. Músicas como Latinoamérica e La vuelta al mundo estão na minha playlist de repeat, e já me fizeram companhia em momentos complicados.
Mas foi só com o primeiro Relampeio que fui entender que essa identificação com o trio vai muito além do idioma. Ainda é recente para mim esse entendimento como latino-americana, e está sendo um processo semelhante a me entender como mulher negra de pele clara.
Porque cai a ficha de que eu não seria bem recebida em qualquer país, que teria muitas dificuldades se viajasse para o exterior, uma carga que eu já enfrento (em parcela muito menor) no meu próprio país. Imigrante, latina, haole (quem viveu em Floripa sabe). É um pouco perturbador olhar para os sonhos que te venderam, e perceber que eles não foram feitos na medida pra você. Olhar para o país em que você vive, e perceber que não é bem vinda nele - mas atualmente, quem é?
Aí, em março desse ano, René Pérez, também conhecido como Residente Calle 13, lançou esse clipe aqui:
Eu já assisti mais vezes do que o indicado. Ainda lembro do sentimento de ver pela primeira vez e sentir a pele arrepiar com o ritmo, a batida, a raiva na voz e nos movimentos. Uma raiva muito minha. Porque esse clipe pode não ser sobre mim, mas com certeza é sobre nós.
E só fica melhor quando você começa a entender as referências e o subtexto (indico a leitura desse texto e do fio indicado nele, mas vai com o coração preparado). Foram 4 anos de trabalho, uma pesquisa absurda, uma maldita pandemia, para Residente conseguir preparar uma resposta (ou uma provocação?) ao vídeo de Gambino. Não tem falta de respeito, arrogância, prepotência, era um grito de resposta. Um grito que está a séculos engasgado.
Mesmo depois de meses, essa música continua voltando aos meus pensamentos. Porque além de tudo, tem essa força e essa energia que eu sinto cada vez mais falta em tantas coisas que consumo no dia a dia.
Sei lá, é sempre um sentimento incrível ver um artista que entende suas ferramentas de trabalho, sua mídia, e a utiliza para se expressar. Artistas que conseguem dizer o que a gente nem sabia que estava entalado. Porque existem filmes, livros, músicas, e o que for, que recriam exatamente o que o público quer, através de análise de dados e comportamento. Mas é uma soma bizarra de estudo, treinamento, e essa necessidade de dizer o que precisa ser dito, que me faz ver a real diferença entre arte e publicidade.