A todos os tributos
Esse texto tem muitos spoiler dos filmes e dos livros de Jogos Vorazes, já fica o aviso!
Depois que descobrimos que o próprio Voldemort escreveu o Harry Potter, eu me vi meio carente de filme pra assistir à toa e decidi matar a vontade de revisitar Jogos Vorazes. Afinal, nada como um filme de jovens se matando pra acalmar a alma. E caramba, como a história é boa, né?
Para quem não conhece, Jogos Vorazes é uma série de quatro filmes que adapta a trilogia de mesmo nome, da escritora Suzanne Collins. Na história, de Panem, um Estados Unidos distópico dividido em 12 distritos, uma jovem e um jovem de cada distrito são sorteados uma vez por ano para participarem dos Jogos Vorazes, em que eles são levados à uma arena em que apenas um sairá vivo. Tudo 100% televisionado para diversão da Capital, e pavor das outras regiões.
Sempre que lembro da história, o ponto que mais me faz pensar é sobre a polêmica do triângulo amoroso. O livro foi lançado no Brasil numa época de várias histórias de uma personagem principal dividida entre dois garotos. Nem preciso dizer da preguiça que me dá, né? Mas Jogos Vorazes me convenceu ser diferente.
Lembrando que a partir daqui tem muito spoiler da história
Katniss (Jennifer Lawrence) não está só na dúvida entre dois caras, ela também está em crise sobre quem ela era e quem ela se tornou. Se Katniss tivesse vivido a vida esperada no Distrito 12, seu futuro obviamente seria com Gale (Liam Hemsworth). Naquela situação ele era o ombro amigo, a pessoa com quem dividia as piores dores e, juntos, enfrentavam os maiores desafios - principalmente a fome. Mas um Jogo aconteceu. Ela participa do seu primeiro torneio e se transforma numa pessoa diferente.
Os traumas que ela enfrentou só foram entendidos por Peeta (Josh Hutcherson). As nuances, as dificuldades, não tem nada que Katniss possa explicar que seja o suficiente para aproximar Gale desse trauma. Tanto é que ele não entende, sente ciúmes e não acredita quando ela explica que foi tudo encenação.
Tem uma cena muito simbólica no terceiro filme em que o Gale diz que se arrepende por não ter se voluntariado pra ir com ela, e Katniss diz que ele não podia, porque ele precisava cuidar da família dela. E acho que isso define demais o relacionamento dos dois. Ela só se voluntariou porque sabia que ele estava com a família dela. E exatamente por isso que aquele é o ponto de ruptura entre eles, destino - ele não poderia estar ao lado dela no evento mais traumatizante que ela viveria.
Além do mais, apesar de Peeta passar o tempo todo dizendo não ser importante, ele foi fundamental para que ela sobrevivesse. Gale é muito igual a ela, no desprezo pelas pessoas, no modo de sobrevivência. Ele seria ótima companhia para uma arena, se fosse só isso. Mas não é, né? Antes de tudo, o jogo é político. É Peeta quem tem o traquejo pra isso. É ele quem dá a deixa para eles se tornarem um casal no primeiro filme, quem agrada o público, sabe sorrir e acenar na hora certa, dando a liberdade para que Katniss pudesse ser a pessoa afrontosa que ela sempre foi. Eles sobreviveram porque se tornaram o equilíbrio perfeito de tudo que o Capitólio queria ver - e também a revolução.
No segundo filme, logo no início quando eles voltam para casa, Katniss ainda tenta ser a pessoa que era antes. Ainda sem entender que aquilo nunca seria passado, ela tenta voltar à mesma sintonia com Gale, e se afasta de Peeta. Mas Gale já não era mais o mesmo, ela não era mais a mesma, e os fantasmas estavam mais vivos do que nunca. Infelizmente, foi num segundo jogo que ela entende o vínculo que ela criou com o Peeta a partir daquilo tudo.
Tudo isso norteia demais a noção do que está mudando na vida de Katniss. O pavor de abandonar um futuro que ela previa, para aceitar o futuro que a obrigaram a ter. O sofrimento de olhar para seu passado nos olhos de quem ela amou e não conseguir mais se sentir parte daquilo. Tem algo mais humano do que querer se voltar para o passado, com medo do que o mundo te obriga a ser no futuro?
Outra cena que acho terrivelmente simbólica é no primeiro filme, quando Katniss e Peeta sentam na frente de um grande vidro e olham pra paisagem enquanto conversam. Ela está tentando digerir tudo o que está acontecendo quando Peeta diz: "Eu só não quero que eles me mudem. Que eles me tornem alguém que eu não sou". Katniss diz que não tem o direito de pensar assim por causa da família dela, mas no final das contas ela vira o Tordo exatamente porque não perde sua essência. Enquanto isso, Peeta é sequestrado, manipulado e corrompido, tornando-se exatamente o que ele não gostaria de ser.
Katniss se vê culpada do mal que causou ao seu distrito e à sua família. Mas ela, e só ela, entende exatamente o que fizeram ao Peeta. Só ela entende a dor que é se tornar o que não gostaria, mesmo que no caso dela, ela tenha se tornado o símbolo de uma revolução sem nunca poder escolher. Ser manipulada, exposta, obrigada a fazer o que não quer. Nada é tão invasivo quanto o que Peeta sofreu, mas só eles dois compartilham de várias dores bem específicas.
Tem várias outras reflexões que podem ser feitas sobre Jogos Vorazes. A questão política é a que mais vejo debaterem, e eu sou da defesa de que a história tem um ótimo desfecho para mostrar que a Ditadura Moeda pode ser tão ruim quanto a Ditadura Poder. Tem também o final, que muita gente acha controverso, mas que eu acho na medida - às vezes as pessoas só precisam de rotina e sossego para serem felizes, sabe?
Mas não tem nem como eu abordar tudo aqui então fiquem a vontade para discordar de tudo o que eu disse nos comentários e a gente continuar esse papo!
Sei que é meio fora do padrão eu dedicar um textão para um filme/livro, mas acho que escrever newsletter é também pra isso né? Conversar com quem eu gosto sobre o que eu acho interessante.
Vou terminar o texto com essa música da Katniss cantando The hanging tree, que sempre me arrepia:
Um abraço e um ótimo ano pra gente!
Minha relação com a história é diferente porque eu não vi os filmes, só li os dois primeiros livros e fiquei tão desanimada que acabei nunca indo atrás do terceiro, então não tenho a menor ideia do que você está falando sobre a Capital corromper o Peeta (e estou com MUITO medo de descobrir kkkkk). A impressão que eu tenho é que nos livros (1 e 2) nunca sequer chega a ter um "triângulo amoroso". Acho que quando ela decide fingir ser um casal ela até pensa "o que o Gale vai achar disso", mas a verdade é que quando a Katniss vai para os Jogos Vorazes, é bem eles sendo separados pelo destino mesmo. No livro 2 ele só é mencionado meio de passagem, como "e eu tive que fingir que ele era meu primo, porque vira e mexe a Capital vinha fazer entrevistas e não podíamos perder o disfarce de casal ". Ouvi inclusive boatos de que o pouco de triângulo amoroso que tem a autora colocou a contragosto porque os editores acharam que seria uma boa ideia. O livro 2 me decepcionou porque a Katniss está cansada e traumatizada demais para ser uma boa narradora. É totalmente compreensível ela estar assim... Mas ter que acompanhar a narração em primeira pessoa dela foi frustrante, porque o Peeta e o Haymitch é que conventravam toda a ação do livro - que no livro 2 é muito mais a política do que a sobrevivência na arena - e a gente não tinha acesso a eles durante a leitura. Tinha mais alguma coisa que eu queria acrescentar, mas foram duas semanas longas e difíceis e eu esqueci. Mas foi legal ler sobre Jogos Vorazes e ter esse diálogo.
Eu gosto demais desses livros e da história toda, de como é complexa e cheia de nuances a ponto de dar pra analisar de vários ângulos, sempre por aspectos diferentes. Minha última releitura foi pelos audiolivros na versão em inglês, interpretados pela Tatiana Maslany, e foi SENSACIONAL o tanto de camadas que adicionou na história (recomendo demais, o primeiro tem no spotify inclusive).
Acabei ouvindo na sequência o livro novo, do Snow, que morria de preconceito porque tinha tudo pra ser péssimo e fui positivamente surpreendida. É terrível como a história já é, não tenta justificar os atos de ninguém, só mostra de forma ainda mais clara como a manipulação funciona, a ponto de transformar um evento odioso de crianças se matando em um espetáculo aclamado pelo público (da Capital, mas ainda público).